sexta-feira, 20 de outubro de 2017

MEMORIAL DE FORMAÇÃO (REVISITADO)



Papel e tesoura
Sempre estive rodeado de papel. Quando criança, ainda sem saber ler, adorava pedir para minha mãe que recortasse os personagens das diversas revistinhas em quadrinhos que viviam espalhadas pela casa. Tio Patinhas, Ziraldo e a Turma do Pererê, Maurício de Souza e a Turma da Mônica são algumas das que guardo com carinho na memória. Com o tempo, passei a ler e a recortá-las também. Talvez seja por isso que tenho uma certa habilidade com tesouras. Fiz muitos ensaios de recorte e colagem no chão da sala de casa. Posso dizer que minha mãe, Dona Cidinha, foi a primeira professora de artes que tive, não por ser uma artista, mas por ter sido participativa, motivadora e cúmplice das minhas aventuras de papel.

Meu quarto era repleto de coleções de livros da Disney e na sala, ao lado do aparelho de som, tínhamos vários discos em vinil com histórias clássicas infantis, como Pedro e o Lobo e o Gato de Botas 
(talvez tenha sido as artes das capas as primeiras a alimentarem meu desejo pelo design gráfico, mesmo sem a mínima noção do que de fato era esse tal de design). Imaginar, através dos contos narrados, foi uma grande escola para despertar e aguçar o desejo pela criatividade. Anos mais tarde, isso se traduziria em boas notas nas aulas, principalmente em educação artística, uma disciplina que me proporcionou momentos de celebridade. Cola, tesoura, cartolina, lápis de cor, giz de cera, foram meus grandes aliados e minha fonte de poder. Por ser muito tímido, através deles eu conseguia admiração e respeito de amigos e professores. Assim como um jogador de futebol se refere à bola como companheira, como aquela que lhe deu um significado na vida, digo o mesmo do papel. Ele me conduziu ao que sou. É, definitivamente, não sou designer gráfico por acaso.

Passeio de fim de semana
Mais velho, porém ainda menino, comecei a admirar super-heróis como Batman e Homem-aranha. E sabe qual era o passeio que adorava fazer? Ir com meu pai, aos finais de semana, a uma banca de jornal (hoje alguma criança sabe o que seria essa tal de banca de jornal??). Entre um periódico e outro, o convencia a levar uma história em quadrinhos. Meu sonho era ter uma banca só para mim. Ainda hoje preservo o mesmo hábito, não mais com tanta frequência na companhia do Seu Pedro, mas se vejo uma e entro, saiba que irei demorar. Se bem que, as bancas que ainda sobrevivem, já não possuem mais tantas coisas assim. Tenho um imenso prazer em comprar graphic novels, ver novas publicações, analisar projetos gráficos, mesmo quando o assunto não desperta tanto interesse. Por mais que a internet ofereça fácil acesso às publicações online, não abro mão de sentir o cheiro da impressão e de uma bela folha de papel. Concordo que tal passeio está com os dias contados mas considero a banca um refúgio, que todo designer deveria fazer uso vez ou outra. Me aproximei tanto deste universo que acabei indo trabalhar numa empresa de comunicação cujo principal produto é uma revista.

Máscaras
Pois bem, chegou um dia que ao invés de recortar os personagens dos quadrinhos, passei a desenhá-los. Se bem que depois acabava recortando para brincar. É verdade, eu brinquei muito com bonecos de papel. Dizia mais ou menos assim: eu posso ter qualquer um, basta desenhar. De figuras conhecidas àquelas que ganhavam vida através da minha imaginação. Cheguei até a vender para os amigos da rua. O comércio ainda se estenderia para outra área: o carnaval. Como viajávamos de Volta Redonda para a casa da minha avó, a saudosa Dona Deuzira, aproveitava aqueles dias de folia para desenhar e vender máscaras de papel numa pequena e pacata cidade do interior de Minas Gerais. Criava os temas, recortava, aplicava o elástico com a ajuda de minha mãe e pendurava os modelos no portão. E não é que eu vendia mesmo! Fazia até por encomenda. Olhando para aqueles dias, vejo que mesmo sem saber como nomear o que estava de fato fazendo, já aplicava os processos que caracterizam a profissão de 'programador visual', já percorria as etapas de um projeto gráfico.

O videocassete, a cartolina e a sala de aula

Quando meu pai comprou nosso primeiro videocassete, passei a gravar os desenhos animados para congelar a imagem e copiá-los. Aquilo para mim foi um dos maiores presentes que alguém poderia ganhar! Sentava no sofá com minha prancheta e ficava horas assistindo, congelando a imagem e desenhando. Era uma realização fascinante poder transportar o que estava na tela para o papel. Naquele momento estava me apropriando da tecnologia pela primeira vez, bem antes de dormir e acordar debruçado em um computador, como faço hoje em dia. Embora seduzido (e abduzido) pelo mundo da tv e suas possibilidades, também criava times de futebol de cartolina e ainda organizava campeonatos no tapete da sala, além de desenhar e montar carrinhos (o veículo dos ghostbusters, clássico filme dos anos 80, é inesquecível para mim). Ainda nos tempos de colégio, desenhava os títulos dos cartazes e capas dos trabalhos da turma. O engraçado é que quando a professora os recolhia, todos, ou quase todos, tinham as mesmas características: letras desenhadas à mão. Mantive uma relação com a tipografia, disciplina importantíssima no currículo do curso de programação visual, à qual só fui ter conhecimento, entendimento e contato muitos anos depois.

Das réguas e compassos ao Rio de Janeiro

Neste encontro comigo mesmo, vejo que a base de minha formação intelectual e profissional foi toda desenhada ao longo de uma saudável vida provinciana. E por pouco não tomei outro rumo, quando ingressei no ano de 1996, na faculdade de Engenharia Civil de Volta Redonda. Por quatro anos me vi engessado, em meio a réguas e compassos, período em que me distanciei da raiz. Eu diria um abandono significativo. Enquanto agradava a muitos, sentia um enorme vazio, que crescia intensivamente. E foi numa tarde qualquer, no meio de uma aula, talvez Hidráulica ou Resistência dos Materiais, que subitamente fechei o caderno, me levantei e saí, para não mais voltar. Seis meses e um vestibular depois, em fevereiro de 2000, este 'desertor' desembarcava no Rio de Janeiro para iniciar os estudos numa área do conhecimento que sempre esteve presente, mas que enfim ganharia oficialmente um nome: desenho industrial, com habilitação em programação visual.

Apesar da fase improdutiva, sob o ponto de vista profissional, durante a caminhada pela Engenharia Civil, em momento algum a encaro como uma grande perda de tempo. Pelo contrário, atribuo à estes anos o início do meu amadurecimento como indivíduo em constante formação. Mais de dez anos depois vejo que 'viver academicamente' está muito além da carreira desejada. E aqueles quatro anos foram, de fato, importantes para o processo contínuo de construção deste 'ser'. Paulo Freire (1996, p. 53) nos diz que:

(...) percebo afinal que a construção de minha presença no mundo, que não se faz no isolamento, isenta da influência das forças sociais, que não se compreende fora da tensão entre o que herdo geneticamente e o que herdo social, cultural e historicamente, tem muito a ver comigo mesmo.

A herança que carrego em mim

Carrego uma herança tão rica que ao direcionar o olhar para minha trajetória, vejo claramente que o que sou é fruto das experiências proporcionadas pelos meus pais e da liberdade que me deram para continuar experimentando. E são as figuras de meu avô e de meu pai que mais vejo no retrovisor. Ambos percorreram jornadas intensas em busca de condições favoráveis a si e aos que os cercavam. Se hoje estou aqui, tendo o privilégio de me expor através dessas linhas, devo isso aos dois. O primeiro, um clássico homem do campo, e o segundo, a materialização do que é ser um 'trabalhador', do que é 'viver o trabalho'. Posso dizer que fui educado pelo trabalho antes mesmo de ter um. O uniforme empoeirado, o rosto sujo e marcado pelos longos turnos, as greves, os dias que se transformavam em noites, as crises, os conflitos, as histórias e os momentos de prazer e vitória ao ver que a empresa, a gigantesca CSN de Volta Redonda, prosperava. E com ela, a nossa família.

Concluo com outro pensamento de Paulo Freire (1996, p. 19), quando este diz que: 

(...) somos seres condicionados mas não determinados. Reconhecer que a História é tempo de possibilidade e não de determinismo, que o futuro, permita-se me reiterar, é problemático e não inexorável.


Referência:
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.


*Texto originalmente escrito no curso de 'Pós-Graduação em Docência no Ensino Superior' (Estácio-RJ) para a disciplina 'Educação, Trabalho e Inovações Tecnológicas', ministrada pelo Professor Renato Dornellas. Adaptado e revisitado (2017) para o blog.