domingo, 26 de maio de 2013

TRANSPOSIÇÃO CONSCIENTE DE CONHECIMENTOS*


Para que a trajetória do educando no ensino superior se configure em êxito – a este atribuo sua formação como sujeito socialmente ativo e profissional de mercado –, é de responsabilidade da universidade advogar a relação professor-aluno sob a regência de um projeto educacional capaz de permitir a ambos, o protagonismo e a corresponsabilidade ao negociarem juntos as condições favoráveis para o processo formativo acadêmico nas diferentes áreas do conhecimento.

Tais condições perpassam e se estruturam através de alicerces que vão da própria trajetória particular do professor e do aluno – inseridos num contexto histórico, social, político e econômico – ao campo das ciências promovedoras da legitimação e do suporte para a educação, sendo elas a pedagogia e a psicologia.

Mas este docente, adequado ao seu tempo, na figura de mediador, de motivador, de cúmplice do propósito acadêmico, é capaz de abraçar as diferentes manifestações que transitam entre a universidade e o cotidiano fora dela, em esferas que ultrapassam o domínio da sala de aula e as diversas problemáticas que dela se elevam? Como exercer e conduzir a prática docente através deste cenário tão desafiador? Proponho uma discussão acerca dessas inquietudes com base nas ciências acima citadas e em suas contribuições para o desenvolvimento educacional no ensino superior.

Inicialmente coloco em pauta que nada se constrói no vazio, principalmente na educação, que deveria ser o ideal maior de toda e qualquer nação que almeja desenvolver-se no campo da consciência sociocultural e científica, independentemente de sua natureza periférica ou de centro – entendo tais conceitos num contexto político-econômico e não geográfico. Discute-se, em esferas governamentais e mercadológicas, "competência", "eficiência", "qualidade" do ensino, mas estaríamos supervalorizando os métodos em detrimento do lado humano do sujeito, do professor?

A construção do conhecimento se dá ao longo de nossa grande jornada, numa infinidade de experiências que nos fazem seres detentores de particularidades cuja personalidade, pessoal e intransferível, percorrerá toda a nossa existência. Por isso não somos neutros, não somos seres desprovidos de influências alheias, não gozamos de um status de liberdade sem dimensionar o poder daquilo que foi absorvido desde o útero materno; nos primeiros passos, sons, texturas e palavras da infância; nas dúvidas e questionamentos da adolescência; nas incertezas e pressões da vida adulta aos últimos anseios, memórias e recordações já na velhice.

Na condição de seres socialmente ativos, construímos nossa autonomia sob a segurança de uma personalidade compatível com o contexto social, com o padrão de vida em sociedade, embora este último possa ser muitas vezes questionado. E é exatamente no campo educacional, no instante em que a criança inicia sua vida escolar, que esta começa a se manifestar aos olhos do outro. Segundo Marcos Vinicius da Cunha (2008, p. 9) "ao enfocar a psicologia da educação partindo dos paradigmas psicológicos, teremos a oportunidade de encontrar em cada um deles reflexões sobre a sociedade e a cultura". O autor complementa ao nos dizer que

é importante verificar que os paradigmas da psicologia incluem, sempre, uma concepção da problemática individual inserida no terreno das relações sociais. E não poderia ser diferente, uma vez que o ser humano não existe isoladamente. Assim, quando o professor almeja utilizar conhecimentos da psicologia em sua prática pedagógica, deve estar ciente das implicações políticas e culturais que tal atitude pode conter. Afinal, a formação de crianças e jovens na escola é um trabalho de socialização. (CUNHA, 2008, p. 9)

A pedagogia, assessorada pela psicologia, constituem ambas um grande arcabouço de conhecimentos prontos para serem acessados, apropriados e transpostos para o campo educacional; porém, cabe ao docente a certeza de que não existe manual do aluno, não existem métodos acabados e definitivos, como se pudéssemos abrir a gaveta de uma delas e pinçar dali uma sentença para cada caso. Sobre tal pensamento, Cunha (2008, p. 10) nos diz que "[...] nenhuma ciência possui tais soluções, pois educar é algo que se define em campos que vão além da ciência. [...] é aos educadores que cabe a tarefa de julgar em que medida e em que sentido essa contribuição será por eles empregada".

No instante em que se abre a possibilidade de haver uma relação dialética entre educador e educando, esta proximidade dá margens para os problemas que transcendem o campo dos estudos pertinentes ao nível escolar, aos saberes institucionalizados. Abre-se uma grande janela para a vida além do próprio ensino, colocando o docente em contato com o que há de mais profundo e íntimo daquele aluno. Isso faz com que a mera relação em sala de aula não dê conta dos problemas ocultos, que encontram-se muito além da ausência de concentração, da indisciplina, das dificuldades em se expressar textual e verbalmente, da falta de motivação com relação a esta ou aquela disciplina entre outras manifestações. Marcos Masetto (2008, p. 15) contribui com nossa discussão ao dizer que

para as faculdades e universidades, admitir essa dimensão de aprendizagem significa abrir espaços para que  sejam expressos e trabalhados a atenção, o respeito, a cooperação, a competitividade, a solidariedade, a segurança pessoal – superando as inseguranças próprias de cada idade e de cada estágio –, a valorização da singularidade e das mudanças que venham a ocorrer, e um relacionamento cada vez mais adequado com o ambiente externo.

Dentre os vários paradigmas que constituem o campo da psicologia, julgo relevante para a prática pedagógica a teoria da psicanálise, na qual enuncia Cunha (2008, p. 15) que esta propõe "menos ênfase no método, mais preocupação com a pessoa". Ao aprofundarmos este paradigma, encontraremos críticas e apontamentos favoráveis a sua aplicabilidade ou ausência desta para o ensino, sendo o interesse maior aqui expor e abordar questões que nos levem a refletir sobre o que pode ser aproveitado de forma consciente pelo professor, de acordo com a natureza de seus enfrentamentos. Quando falamos em "pessoas" e não em "métodos", humanizamos o processo formativo, nos referimos à construção do indivíduo, afinal de contas não lidamos com máquinas.

Fazer da sala de aula um grande laboratório para análises psicoterapêuticas também não é o propósito. Ao adentrarmos o campo dessas ciências devemos nos preocupar em não nos tornarmos meros observadores de atitudes que irão se transformar em estatísticas, em números, em páginas de revistas de pesquisas sem objetivo prático-reflexivo. O cuidado para que não haja um alinhamento cego com testes, com exames psicológicos e seus resultados – os psicodiagnósticos, por exemplo – com propósito de aferir níveis de inteligência, capacidades e deficiências no desenvolvimento intelectual do educando, precisa ser encarado com responsabilidade e rigor pelas instituições de ensino, avaliando ao lado do docente se tais procedimentos possuem, de fato, relevância para o projeto pedagógico.

Para Paulo Freire (1996, p.115): "Sempre recusei os fatalismos. Prefiro a rebeldia que me confirma como gente e que jamais deixou de provar que o ser humano é maior do que os mecanicismos que o minimizam".

Para o autor deste escrito, o professor jamais deverá se distanciar daquilo que o credencia como educador: a sua sensibilidade para ouvir, para entender, para desvelar aquilo que muitas vezes se mostra em sala de aula através do silêncio. Trata-se de uma grande contribuição da teoria psicanalítica para a educação. A observação se traduz em atitude de coautoria no processo de desenvolvimento do aluno. Deste modo a psicologia, na figura do psicanalista, se apresenta como parceira, como suporte, e não como um mero instrumental.

Vimos que o docente, na condição de ser inacabado, assim como sua prática, pode – e deve ser assim – abraçar diferentes abordagens no interior de seu exercício pedagógico, desde que numa cumplicidade mútua com a instituição de ensino e seus alunos. Em meio ao arcabouço de teorias e paradigmas, em meio a uma trajetória árdua e contínua, esperamos encontrar um docente capaz de romper com o ensino tradicional ao exercer a transposição consciente de conhecimentos advindos de ciências parceiras, em benefício de um processo educacional que forme cidadãos críticos, socialmente ativos e acima de tudo, com autonomia.

Esperando que as inquietudes até aqui expostas não se esgotem, concluo esta reflexão nas palavras de Célestin Freinet (2004, p. 9): "Voltamos a dar à pedagogia aquele aspecto familiar, misto de hesitações e de audácias [...]. Voltamos a colocar a educação no próprio seio do devenir do homem".

Referências:
CUNHA, Marcos Vinicius. Psicologia da educação. Rio de Janeiro: Lamparina, 2008.
FREINET, Célestin. Pedagogia do bom senso. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
MASETTO, Marcos. Professor universitário: um profissional da educação na atividade docente. In:_______. Docência na universidade. Campinas: Papirus, 1998. p. 9-27.

*Texto originalmente escrito no interior do curso de 'Pós-Graduação em Docência no Ensino Superior'  na Universidade Estácio/RJ – para a disciplina 'Construção do Conhecimento', ministrada pela Professora Therezinha de J. Conde Pinto. Adaptado para o blog.